MORTE DE FERNANDO PESSOA


Fernando Pessoa fumava cerca de quatro maços de tabaco diariamente e bebia muito. Nos últimos tempos de sua vida as cólicas abdominais e os estados febris, por vezes intensos, eram cada vez mais frequentes. 

O médico avisara-o mais de uma vez que tinha de parar, mas o poeta não lhe deu ouvidos e prosseguiu o seu caminho alheado da terrível realidade, que pendia como uma sentença fatal sobre a sua vida. Vivia para escrever.

Escreveu tanto e tão diversamente, que ainda hoje os investigadores descobrem textos seus. E, no entanto, a “Mensagem” foi o único livro publicado enquanto viveu. Partiu aos 47 anos quando já nada mais esperava da vida. A infância era o seu paraíso perdido e a mãe, eterna âncora, que ele amava mais do que tudo na vida, nunca o compreendeu. Ofélia foi a amada possível, que teria de abandonar porque a sua vida era guiada por Mestres oclusos e tudo nela girava em torno da sua obra literária. Para a concretizar precisava de sossego e de isolamento. Isso mesmo lhe escreveu em carta.. 

“Era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível e através do muito pequeno, a alma poética do universo.” 

Para ele “ a poesia é assombro admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência da sua queda, espantado com o que vê”.

Tornou-se infinito na obra imensa que deixou e no pensamento que ainda hoje é estudado. Era tão imenso e tão profundo que não cabia em si. Tinha de se outrar em tantos heterónimos e figuras literárias, quantos a sua imaginação criara. Insubordinador de espíritos, criador de paradoxos e de enigmas, foi Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, entre tantos outros (mais de 70), mas neles todos foi ele mesmo. 

Tornou-se o escritor português mais traduzido no mundo e o “Livro do Desassossego”, paradoxalmente em prosa e um não livro, porque fragmentário, é o best seller da sua obra.

Veio, como muito bem notou, antes do seu tempo e dos seus pares e atingiu os cumes onde apenas teve por companhia a solidão. 

Deixou-nos um lamento, que era mais um grito de alma: “ Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, terei enfim a gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que teve, quando vivo. Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E assim foi.

A morte não significava para ele o fim, mas apenas a passagem para a vida verdadeira, a única que importava, já que esta em que se encontrava de passagem não era mais do que sonho e sombra, porque “morrer não deve ter sentido.” 

Cristão gnóstico, Fernando Pessoa, via-se a si mesmo como centelha perdida no exílio terreno, que retornaria à origem divina após a passagem mundana. Estrangeiro absoluto nesta vida, o poeta era o eterno viajante ansiando por aportar à origem de tudo, que no final, se encontrava no interior de si mesmo. 


“Sei que há mais mundos que este pouco mundo

Onde parece a nós haver morrer —

Dura terra e fragosa, que há no fundo

Do oceano imenso de viver.


Sei que a morte, que é tudo, não é nada,

E que, de morte em morte, a alma que há

Não cai num poço: vai por uma estrada.

Em Sua hora e a nossa, Deus dirá.”


Pouco ou nada importavam os avisos do médico, as dores sentidas, ou mesmo as premonições, a um homem para quem a vida era sentida como “uma viagem experimental, feita involuntariamente” pelo espírito através da matéria. Aliás, tinha já antecipado: “não conto gozar a minha vida, nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.” Acrescentaria ainda, noutra altura: “A única compensação moral, que devo à literatura é a glória futura de ter escrito as minhas obras presentes”. Desconhecido do público, em vida, apenas reconhecido pelos seus pares, o poeta como que pressentia o sucesso vindouro.

Porém, se o espírito não conhecia barreiras, o corpo degradava-se. No dia 29 de novembro de 1935, ainda chamou o Sr. Manassés, barbeiro, que morava bem perto de si, na rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, mas acabou por ser hospitalizado no Hospital de São Luís dos Franceses, no Bairro Alto, com uma crise hepática grave. Já na cama, pressentindo o fim, pediu papel e lápis para escrever as últimas palavras, na forma enigmática que lhe era tão peculiar. Não usou o português, mas sim um inglês literário:


”I know not what tomorrow wil bring”.


No dia seguinte, a 30 de novembro de 1935, Fernando Pessoa deixou-nos. Eram cerca das 20 horas. 

Ocorrem-me as suas palavras visionárias: “Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escritor, mas toda uma literatura, quando não contribuísse para me divertir, o que para mim já era bastante, contribuo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente.” 

O escritor foi a enterrar no Cemitério dos Prazeres, no dia 2 de dezembro de 1935. Luís de Montalvor discursou em nome dos sobreviventes do grupo do Orpheu. Fisicamente deixara-nos, mas a verdadeira importância da sua obra ainda iria ser descoberta, reconhecida, estudada e traduzida para todo o mundo, até aos dias de hoje. 

Fernando Pessoa era sensitivo e disso nos apercebemos em muitas dos seus escritos, como este em que atribuiu ao mestre Caeiro uma das suas frases mais proféticas e que viria a transformar–se numa incontornável realidade: 


“Passo e fico, como o Universo”. 


                Júnior Sá.

Colunista e Historiador.

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