Caixeiros, uni-vos! O espectro que rondou o comércio de Piracicaba
Atas da Câmara revelam a mobilização da classe caixeiral pela redução da jornada de trabalho no final do Século 19
A publicação, em 1848, do Manifesto do Partido Comunista, sintetizou, logo em seu início: “Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo”. Os autores – Karl Marx e Friederich Engels – indicavam, assim, que os estudos sobre a estrutura da sociedade capitalista, aos quais ambos se dedicavam arduamente, abriam um novo horizonte à classe trabalhadora, com influência histórica sem precedentes.
Não é possível ter elementos claros se um texto publicado originalmente em alemão no Reino Unido influenciou trabalhadores além das fronteiras europeias e em diferentes realidades e condições de vida. Mas também não se deve ignorar que a segunda metade do Século 19 – em Londres ou na pacata Piracicaba – foi tomada por mobilizações de trabalhadores em busca de melhores condições de vida.
Atas da Câmara Municipal de Piracicaba das últimas décadas do século retrasado apontam que, por aqui, a classe caixeral – mais precisamente os trabalhadores do comércio – se mobilizaram por redução na carga horária, aumento salarial, entre outros direitos. “Eles se viam explorados ao se compararem com outros segmentos”, relata Caroline Leme Margiota, estagiária de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, responsável pela pesquisa da edição desta semana do Achados do Arquivo.
O movimento está registrado na 3ª sessão ordinária da Câmara, ocorrida em 4 de janeiro de 1874. Nela, foi lido abaixo-assinado dos caixeiros piracicabanos que solicitavam a redução da jornada de trabalho nos “domingos e dias santificados”:
“(...) lido um requerimento assinado por vários caixeiros de casas comerciais pedindo que a Câmara inclua-nos suas [...?] disposição para que as casas de negócio fechem-se todas, nos domingos e dias santificados das duas horas da tarde em diante. [...?] digo a câmara atendendo ao requerido resolveu que fosse remetido o requerimento à Comissão encarregada da revisão do Código de Posturas. Lida e aprovada a presente, depois de nada mais haver a tratar; e o Senhor Presidente [...?] a sessão. Eu Jeronymo João Lopes de Siqueira, Secretario escrevi” (em transcrição livre)
Mas a mobilização não parou por aí. Os ‘caixeirais’, como eram denominados, continuaram na luta por direitos trabalhistas, sobretudo contra a alta carga horária.
A ata da sessão ordinária da Câmara de 6 de outubro de 1886 registra a decisão dos “negociantes estabelecidos na cidade” – ou seja, dos donos dos estabelecimentos – de acatar uma resolução de 4 de março daquele ano – como está relatada em outra edição da série Achados do Arquivo – e decretar o fechamento dos comércios aos domingos e em dias santos, atendendo a reivindicação da categoria dos caixeirais:
“Atendendo ao justo pedido da classe caixeral, resolveram fechar seus estabelecimentos nos domingos e dias santificados, ao meio dia em ponto, ficando cada um daqueles que não cumprir com a presente resolução, obrigando à pagar Rs 5.000, importância que reverterá em favor da Santa Caza de Misericórdia. Este pagamento obrigatório será feito cada vez que o signatário infringir a presente resolução. (...) Esta resolução vigorará do dia 17 do corrente, inclusive, em diante” (em transcrição livre)
“Mas os caixeiros não se contentaram com o feito, apenas a resolução se demonstrou insuficiente para eles”, analisa Caroline Margiota, ao pontuar que entre o registro do abaixo-assinado da categoria até a decisão pelo fechamento aos domingos e dias santos, foram mais de 12 anos. Os caixeiros encaminharam ainda pedido para a criação de “posturas”, ou seja, que finalmente fosse criada uma Lei Municipal e que, através dela, tivessem os direitos resguardados.
A solicitação foi feita por meio de abaixo-assinado, datado no dia 14 de janeiro de 1887 – portanto, alguns meses depois –, contendo a assinatura de 15 caixeiros. A pauta, porém, foi discutida na sessão de 5 de fevereiro daquele ano.
Desse modo, foi estabelecido por mandado municipal os horários e o valor da multa que os comerciantes pagariam se acaso houvesse o descumprimento:
“(...) é de parecer que a Câmara toma em consideração e converte em lei a vontade expendida pelo comércio desta cidade; fechando-se as portas das casas comerciais ao meio dia, nos dias santificados, aplicando-se aos [...] [...] a multa de 20$000 em cada mês que inflingirem a postura que a isso os obrigam (...)”
Caroline Margiota avalia que a abnegação dos caixeirais em aprovar uma lei para a garantia dos direitos trabalhistas, demonstra o peso da participação do povo na criação de políticas públicas que tiveram influência direta em toda a dinâmica social. “No Brasil, somente por volta de 1903, concretizou-se na forma da lei o fechamento dos comércios aos domingos”, destaca. “Esses documentos apontam evidências para o processo gradual da legislação que norteia a sociedade como a conhecemos nos dias atuais”, conclui.
Os caixeiros do século retrasado talvez já tivessem entendido em que lado eles estavam na luta de classes descrita por Marx e Engels. Ainda que sejam nas atas da Câmara apenas “figuras anônimas”, deixaram registrado o potencial de luta dos trabalhadores em escrever a História de qualquer tempo.
ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, para realizar publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.
Texto: Erich Vallim Vicente
Supervisão: Rebeca Paroli Makhoul
Quadro Operários de Tarsila do Amaral.
Júnior Sá.
Colunista e Historiador.