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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 02/12/2025 08:07 -

Quando o chão desaparece: Existencialismo e o sentido da vida em tempos de incerteza

 

Ronaldo Castilho

 

Vivemos um período histórico em que as perguntas fundamentais sobre a existência retornam com força surpreendente. Em meio a guerras que reacendem tensões globais, crises ambientais que avançam rapidamente e transformações tecnológicas que remodelam o trabalho, as relações humanas e até mesmo a noção de identidade, cresce uma sensação coletiva de instabilidade. Nunca estivemos tão conectados e, paradoxalmente, tão expostos à incerteza. É nesse cenário que a pergunta sobre o sentido da vida, tão antiga quanto a própria humanidade, volta a pulsar de forma intensa: como encontrar significado quando o mundo parece se mover mais rápido do que conseguimos compreender?

A filosofia existencialista, embora surgida no século XIX e consolidada no século XX, revela-se extraordinariamente atual. Diferentemente de outras correntes filosóficas, ela não oferece respostas rígidas ou fórmulas prontas. O existencialismo é, antes de tudo, um convite para um encontro profundo com a própria condição humana, com suas fragilidades, angústias e possibilidades. Ele nos lembra que viver é caminhar sobre um terreno instável, e que, apesar disso, ou justamente por isso, somos responsáveis por dar forma e sentido à nossa própria trajetória.

Para Soren Kierkegaard, frequentemente considerado o precursor do existencialismo, a angústia não é apenas um sofrimento, mas uma espécie de vertigem provocada pela liberdade. Estar vivo significa estar constantemente diante de escolhas, sem garantias de que as decisões serão as mais acertadas. Essa percepção torna sua reflexão ainda mais relevante no presente, quando somos diariamente bombardeados por opções, estímulos, informações e caminhos possíveis. Em um mundo que muda em ritmo acelerado, a “angústia da liberdade” se torna quase um sintoma coletivo.

Jean-Paul Sartre ampliou essa discussão ao afirmar que “estamos condenados à liberdade”. Sua frase, tão citada, expressa não um pessimismo, mas uma constatação: o ser humano é irremediavelmente responsável por construir o próprio sentido da vida. Não existe um destino pré-definido, nem um manual capaz de orientar cada passo. Em tempos de incerteza, essa visão pode parecer pesada, mas contém uma promessa libertadora: se nada é garantido, então tudo ainda é possível. A ausência de sentido dado abre espaço para a criação de um sentido pessoal, autêntico e profundamente humano.

Muito antes de Sartre, porém, pensadores já refletiam sobre o desafio de viver em meio à instabilidade. Friedrich Nietzsche, no final do século XIX, observou o colapso das estruturas tradicionais que ofereciam amparo moral e espiritual à sociedade ocidental. Seus escritos previram um mundo em que valores absolutos deixariam de servir como guia, e em que o indivíduo precisaria construir seus próprios princípios. A ideia do amor fati, o amor ao destino, revela uma perspectiva poderosa para os tempos atuais: acolher a realidade como ela é, mas sem renunciar à capacidade de transformá-la. Em um momento histórico marcado pela sensação de caos permanente, Nietzsche parece dialogar diretamente conosco.

Albert Camus, por sua vez, descreveu a vida humana como essencialmente absurda. Buscamos sentido, mas o universo permanece silencioso. Essa tensão gera o sentimento do absurdo, e é justamente aí que se abre a possibilidade da resistência. Para Camus, o valor da vida não está em encontrar uma explicação definitiva, mas em encarar o absurdo com lucidez e coragem. Sua imagem de Sísifo, condenado a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, simboliza a condição humana. E é no instante em que Sísifo toma consciência de sua tarefa e a assume que ele conquista sua liberdade. Em tempos de crises sanitárias, polarização política e instabilidade climática, Camus nos recorda que dignidade e sentido podem nascer justamente da luta diária, mesmo quando a realidade parece desconcertante.

Mas as reflexões sobre a incerteza não estão restritas ao existencialismo moderno. Séculos antes, os filósofos estoicos já afirmavam que muito do nosso sofrimento nasce de expectativas irreais sobre o mundo. Sêneca, um dos principais representantes do estoicismo, escreveu que “somos mais atormentados pela imaginação do que pela realidade”. Sua proposta de concentrar energia apenas no que podemos controlar ganha novo fôlego na era digital, em que a ansiedade é alimentada por estímulos constantes e pela sensação de que estamos sempre atrasados em relação a algo. Epicuro, por sua vez, ensinava que o sentido da vida poderia ser encontrado nas amizades, na simplicidade e na ausência de medo, ideias que contrastam profundamente com o ritmo frenético da sociedade atual.

Se existe algo que diferencia o nosso tempo de qualquer outro, é a velocidade das mudanças. A hiperconectividade trouxe benefícios indiscutíveis, mas também uma sensação de urgência contínua. Vivemos pressionados pela produtividade, pela necessidade de performance e pela comparação incessante que as redes sociais alimentam. O filósofo contemporâneo Byung-Chul Han afirma que habitamos a “sociedade do cansaço”, na qual o indivíduo se transforma em seu próprio algoz ao tentar corresponder às exigências ilimitadas de desempenho. Nesse contexto, a pergunta sobre o sentido da vida deixa de ser filosófica e se torna visceral: como encontrar significado quando existir dói?

É justamente nesse ponto que o existencialismo ressurge como uma bússola. Ele nos lembra que o sentido não está escondido em algum lugar esperando ser descoberto; ele é construído, tijolo por tijolo, nas escolhas cotidianas, nos vínculos humanos, nos projetos que abraçamos e nos gestos de coragem que praticamos. O filósofo e psiquiatra Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, reforçou essa ideia ao afirmar que “quem tem um porquê suporta quase qualquer como”. Frankl acreditava que o sentido da vida nasce tanto da criação individual quanto da relação com o outro, no amor, no trabalho, na responsabilidade e até mesmo na forma como enfrentamos o sofrimento inevitável.

Diante das incertezas atuais, reconhecer que não temos respostas prontas pode ser angustiante, mas também pode ser o primeiro passo para a liberdade. A falta de garantias nos obriga a olhar para dentro e nos convida a participar ativamente da construção do nosso caminho. O existencialismo não promete consolo barato, mas oferece algo mais profundo: a possibilidade de assumir a vida como uma obra em constante criação. Ele nos lembra que, mesmo quando tudo parece ruir, ainda temos a capacidade de decidir como agir, como amar, como resistir e como seguir adiante.

Em um mundo onde o chão parece desaparecer com frequência, talvez o maior desafio seja justamente recuperar o senso de humanidade que se perde entre telas e metas. O sentido da vida pode não estar dado, mas está sempre ao alcance das nossas escolhas. Se somos, como dizia Sartre, condenados à liberdade, cabe a nós transformar essa liberdade em força criadora. E, assim, mesmo em tempos de incerteza, encontramos espaço para esperança, movimento e reinvenção.

Ronaldo Castilho é Jornalista e articulista, com pós-graduação em Jornalismo Digital. É licenciado em História e Geografia, bacharel em Teologia e Ciência Política, e possui MBA em Gestão Pública com ênfase em Cidades Inteligentes.

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