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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 10/11/2025 15:56 -

A nova configuração das classes sociais no Brasil pós-pandemia

 

Ronaldo Castilho

 

A pandemia da Covid-19 deixou marcas profundas na estrutura social brasileira — marcas que não se apagaram com a retomada do crescimento econômico e que, em muitos casos, redesenharam trajetórias de vida, expectativas e posições sociais. Se, num primeiro momento, a crise sanitária foi tratada como um choque temporário, cuja superação dependeria da imunização em massa e da recuperação do emprego, a experiência revelou-se muito mais complexa: o choque ampliou fragilidades já conhecidas e acelerou mudanças estruturais no mercado de trabalho, na composição dos lares e nas formas de proteção social. Embora dados recentes indiquem movimentos relevantes de saída da pobreza — um alívio que importa e deve ser celebrado — não há evidências de que a desigualdade de fundo tenha sido removida. O que se observa é uma recomposição das camadas sociais, com novos grupos oscilando entre relativa segurança e permanente vulnerabilidade.

A leitura superficial dos números pode sugerir otimismo: o Brasil registrou quedas expressivas nas taxas de pobreza em 2022 e 2023, impulsionadas pela recuperação do mercado de trabalho e pelo retorno de programas assistenciais reformulados. No entanto, uma análise mais atenta indica que esses avanços foram, em grande parte, contingentes — dependentes da continuidade das transferências de renda, da evolução das massas salariais e de um cenário macroeconômico ainda volátil. Relatórios multilaterais e estudos recentes mostram que, no auge da pandemia, os auxílios emergenciais compensaram parte das perdas, reduzindo desigualdades de forma temporária. Quando esses mecanismos foram reduzidos ou retirados, uma parcela significativa da população voltou a enfrentar riscos socioeconômicos. Ou seja, houve uma recomposição de rendas, mas também um rearranjo nos determinantes da pobreza, cuja solução não se resume à retomada do PIB.

Ao analisar a “nova configuração” das classes sociais no pós-pandemia, três tendências interligadas se destacam. A primeira é a volatilidade ocupacional. O mercado de trabalho atual não é o mesmo de 2019: ampliaram-se a informalidade, o subemprego e o trabalho via plataformas digitais, e parte do aumento do emprego ocorreu em ocupações com menor proteção e menor poder aquisitivo real. Essa precarização cria uma base intermediária mais frágil — indivíduos que não são pobres pelas métricas tradicionais, mas vivem com pouca margem de segurança e alta exposição a choques econômicos.

A segunda tendência é a concentração de riqueza no topo. Estudos nacionais e internacionais demonstram que, enquanto grande parte dos trabalhadores perdeu renda durante a pandemia, os estratos mais ricos ampliaram seus patrimônios, beneficiados por ativos financeiros, tecnologia e setores que se recuperaram rapidamente. Essa disparidade reforça a distância entre quem depende do salário e quem vive de renda de capital. Autores como Thomas Piketty argumentam que, sem reformar sistemas tributários regressivos, essa dinâmica tende a se perpetuar — o que torna indispensável uma agenda de modernização fiscal e regulação do capital.

A terceira tendência envolve condicionantes territoriais, raciais e de gênero. A pandemia evidenciou — e aprofundou — desigualdades históricas: regiões Norte e Nordeste, periferias metropolitanas e populações negras foram mais duramente atingidas, tanto sanitária quanto economicamente. Mulheres, especialmente mães, assumiram uma carga desproporcional de cuidados não remunerados com o fechamento de escolas e creches, impactando suas trajetórias profissionais e sua renda. Esses grupos acumulam perdas que não são apenas momentâneas, mas estruturais, com efeitos duradouros sobre mobilidade social.

As redes sociais e o ambiente digital intensificam esse debate, amplificando ressentimentos e acelerando narrativas de crise. Ali convivem demandas por soluções imediatas — como transferências, subsídios e emprego público — e discursos de responsabilização sobre governos, mercados e diferentes grupos sociais. Esse conflito simbólico tem consequências eleitorais evidentes: eleitores expulsos da “média de segurança” buscam respostas rápidas às suas inseguranças materiais, o que pressiona governos a equilibrar urgências e reformas estruturais de longo prazo.

Por fim, é fundamental reconhecer que a nova configuração das classes no Brasil pós-pandemia vai além de métricas econômicas: representa mudanças reais nas condições de pertencimento social. Fragilidade de renda, concentração de ganhos no topo, desigualdades raciais, de gênero e territoriais, além da transformação das expectativas de mobilidade, compondo um cenário em que políticas públicas bem calibradas e uma renovada cultura de solidariedade são essenciais para evitar uma sociedade mais fragmentada e menos democrática. A grande lição deixada pela pandemia é clara: crises intensificam estruturas preexistentes. Sem escolhas explícitas — fiscais, laborais e redistributivas — corre-se o risco de cristalizar desigualdades. O novo ano que se inicia exige não apenas correções conjunturais, mas um compromisso renovado com a justiça social.

 

Ronaldo Castilho é Jornalista e articulista, com pós-graduação em Jornalismo Digital. É licenciado em História e Geografia, bacharel em Teologia e Ciência Política, e possui MBA em Gestão Pública com ênfase em Cidades Inteligentes.

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