Quando a política ignora os fatos: os riscos de governar sem evidências
Ronaldo Castilho
Em tempos de incerteza global, em que crises sanitárias, guerras regionais, tensões geopolíticas e mudanças climáticas moldam a vida das nações, a formulação de políticas públicas exige muito mais do que discursos ideológicos ou respostas improvisadas. Hoje, governos enfrentam dilemas que se desdobram em escala global: segurança alimentar, instabilidade energética, fluxos migratórios e ameaças digitais. Nesse contexto, a ideia de políticas públicas baseadas em evidências ganha centralidade. Ela significa, em essência, formular, implementar e avaliar ações governamentais a partir de dados sólidos, experimentos, pesquisas empíricas e análise crítica, em vez de intuições ou conveniências eleitorais imediatas.
Embora o conceito tenha ganhado força no fim do século XX e início do XXI, a busca por decisões fundamentadas acompanha o pensamento político e econômico há muitas décadas. O realismo clássico, por exemplo, representado por Hans Morgenthau nos anos 1940 e 1950, já destacava que a política externa não poderia ser conduzida por moralismos abstratos, mas sim pelo cálculo racional dos interesses nacionais. Esse olhar pragmático sobre o poder internacional inspirou, ainda que indiretamente, uma lógica de “evidência” na tomada de decisões: conhecer os limites, mapear os riscos e agir com base no que é mensurável.
Nos anos 1960 e 1970, a ascensão do liberalismo institucional, com nomes como Robert Keohane e Joseph Nye, reforçou outra dimensão importante: a necessidade de compreender os efeitos de longo prazo da cooperação internacional, da interdependência e do chamado soft power. Nesse campo, dados e indicadores passaram a ser instrumentos centrais para compreender não apenas o poder militar e econômico, mas também a capacidade de atração cultural e institucional. Em outras palavras, as evidências não eram apenas números: tornaram-se fatores de influência no tabuleiro global.
Já nos anos 1990, após o fim da Guerra Fria, intelectuais como Francis Fukuyama e Samuel Huntington apresentaram visões contrastantes que ilustram a tensão entre expectativa e realidade. Fukuyama, em O Fim da História, apostava que a vitória da democracia liberal consolidaria um mundo mais previsível, facilitando a adoção de políticas baseadas em modelos “universais” de sucesso. Huntington, por outro lado, alertava para o choque entre civilizações e para as limitações de análises que ignorassem as raízes culturais e identitárias. A lição que se tira dessa década é clara: a evidência empírica é fundamental, mas jamais pode ser interpretada sem contexto histórico, cultural e político.
Com a virada do século XXI, a ciência econômica e social incorporou metodologias cada vez mais rigorosas. Esther Duflo, Abhijit Banerjee e Michael Kremer, laureados com o Nobel em 2019, tornaram-se símbolos de uma nova era de avaliação de políticas públicas. Os experimentos randomizados (RCTs) demonstraram que programas sociais e educacionais podem ser testados em pequena escala, medidos e ajustados antes de sua expansão nacional. Essa prática representou um divisor de águas: a política deixou de ser apenas palco de promessas e passou a se apoiar em métricas de impacto mensurável. Ainda assim, o desafio permanece — como aplicar esses métodos em áreas macroestruturais, como segurança internacional, mudanças climáticas ou desigualdades globais, onde variáveis se entrelaçam de forma complexa?
Na atualidade, o mundo multipolar intensifica a necessidade de governança baseada em evidências. A rivalidade entre Estados Unidos e China, por exemplo, não se traduz apenas em disputa militar ou comercial. Ela envolve cadeias produtivas, inovação tecnológica, infraestrutura energética e até padrões de inteligência artificial. Nesse cenário, políticas públicas nacionais — da regulação digital à transição energética — tornam-se peças de um tabuleiro geopolítico. Evidências científicas sobre impacto ambiental, custos de transição ou riscos de dependência tecnológica tornam-se, ao mesmo tempo, instrumentos de política interna e de diplomacia internacional.
Não por acaso, instituições multilaterais como a OCDE, a ONU e o Banco Mundial vêm defendendo que governos adotem marcos legais que obriguem a avaliação sistemática de programas e políticas. Relatórios recentes indicam que países que investem em dados transparentes e avaliações independentes não apenas obtêm melhores resultados sociais, mas também ampliam a confiança internacional em suas instituições. Isso se reflete diretamente em acordos comerciais, fluxos de investimentos e parcerias estratégicas. Um país previsível e baseado em evidências atrai aliados; um país que governa pelo improviso gera desconfiança e instabilidade.
Entretanto, não se pode ignorar as críticas. A tecnocracia excessiva, que tenta reduzir tudo a números, corre o risco de apagar valores e escolhas políticas legítimas. Como lembram estudiosos contemporâneos, como Paul Cairney, a tradução de evidência em política não é automática. Exige negociação, comunicação clara e sensibilidade democrática. Afinal, dados não falam sozinhos: são interpretados, disputados e contextualizados. Uma evidência pode indicar eficácia técnica de uma medida, mas a decisão final envolve também custos sociais, valores éticos e prioridades coletivas.
Aqui reside a atualidade do debate: como equilibrar a ciência e a política em um mundo polarizado, em que fake news, populismos e interesses imediatos ameaçam sufocar análises racionais? A resposta não está em exaltar apenas a racionalidade técnica, mas em integrá-la a processos participativos e transparentes. A democracia fortalece a evidência quando garante que dados e análises sejam discutidos com a sociedade, em linguagem acessível e com abertura para críticas.
Na geopolítica mundial, essa integração é ainda mais vital. A pandemia de Covid-19 demonstrou que países que seguiram orientações científicas — investindo em sistemas de saúde, vacinação em massa e monitoramento epidemiológico — tiveram resultados mais consistentes. Já aqueles que cederam à politização das evidências sofreram perdas humanas e econômicas mais graves. O mesmo raciocínio se aplica à mudança climática: nações que apostam em dados e modelos de projeção conseguem se antecipar e se adaptar, enquanto outras ainda negam as evidências em nome de ganhos imediatos.
Portanto, o futuro das políticas públicas passa por três movimentos complementares. O primeiro é institucionalizar o uso da evidência, criando centros independentes de avaliação, mecanismos legais de prestação de contas e exigência de relatórios transparentes. O segundo é adotar o pluralismo metodológico: nem só experimentos, nem só estatísticas; mas também análises qualitativas, cenários geopolíticos e inteligência estratégica. O terceiro é democratizar o acesso à informação, garantindo que a população compreenda, participe e fiscalize as escolhas feitas com base em dados.
Ao longo das décadas, pensadores de diferentes correntes — de Morgenthau a Nye, de Fukuyama a Huntington, de Duflo a Cairney — ensinaram que a evidência é indispensável, mas nunca suficiente. Ela precisa ser interpretada, negociada e aplicada em contextos diversos. Hoje, diante de crises globais e rivalidades renovadas, políticas públicas baseadas em evidências não são apenas instrumentos de eficiência: são armas de estabilidade, confiança e legitimidade no sistema internacional. Governos que souberem alinhar técnica e política, ciência e democracia, terão maiores condições de oferecer bem-estar a seus cidadãos e exercer influência positiva no mundo.
Ignorar a evidência, ao contrário, significa ampliar o espaço do improviso, da manipulação ideológica e da insegurança global. Em tempos de volatilidade, apostar em políticas públicas baseadas em evidências é, ao mesmo tempo, um ato de responsabilidade nacional e um gesto de prudência geopolítica.
Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.