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Coluna - "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 09/06/2025 10:08 - Colunas

Populismo e autoritarismo: os riscos à ordem democrática

Ronaldo Castilho

 

Populismo e autoritarismo são fenômenos que, embora distintos, frequentemente caminham lado a lado, especialmente em contextos de crise econômica, instabilidade política e perda de confiança nas instituições democráticas. Ao longo da história, líderes carismáticos com discursos inflamados têm se valido do sentimento de frustração e insegurança das massas para concentrar poder e enfraquecer os mecanismos democráticos. O populismo, ao se apresentar como voz direta do "povo" contra as "elites corruptas", tende a simplificar problemas complexos e a rejeitar as mediações institucionais, enquanto o autoritarismo mina o pluralismo e o Estado de Direito, buscando soluções centralizadoras que limitam liberdades civis.

Desde a Antiguidade, pensadores têm alertado sobre esses riscos. Platão, em A República, já desconfiava da democracia por acreditar que, sem o devido controle racional, ela poderia ser corrompida pela demagogia, levando à tirania. Aristóteles, por sua vez, diferenciava entre a “politeia” (boa forma de governo dos muitose a “demagogia” (sua degeneração). No século XVII, Thomas Hobbes justificava o autoritarismo como necessário para garantir a ordem, mas alertava que o poder absoluto sem controle poderia se tornar destrutivo. Rousseau, no século XVIII, embora exaltasse a soberania popular, também reconhecia que, quando manipulada, a vontade geral podia se converter em tirania da maioria.

No século XX, Karl Popper defendeu que a democracia não deve ser definida pela escolha de líderes, mas sim pela possibilidade de removê-los sem violência — ou seja, por meio de instituições fortes e controle recíproco. Popper alertava contra os “engenheiros sociais” que, em nome de um bem maior, impunham projetos totalitários. Hannah Arendt, ao analisar o totalitarismo nazista e stalinista, identificou o isolamento do indivíduo e a destruição do espaço público como pontos centrais para a ascensão do autoritarismo. Já Norberto Bobbio, jurista e filósofo italiano, sublinhou que a democracia é frágil quando os direitos fundamentais são relativizados, e quando a população abdica da vigilância crítica.

A partir da teologia, autores como Dietrich Bonhoeffer, mártir do nazismo, lembram que a fé verdadeira não pode compactuar com regimes de opressão. Para Bonhoeffer, o cristão tem o dever de se posicionar contra estruturas injustas, mesmo que isso signifique enfrentar o poder constituído. Leonardo Boff, em uma abordagem latino-americana, aponta que o discurso autoritário frequentemente usa símbolos religiosos para legitimar a dominação e esconder a opressão. A Teologia da Libertação, portanto, propõe uma espiritualidade comprometida com a justiça social, a igualdade e a denúncia profética contra os mecanismos de exploração política.

Outros pensadores contemporâneos, como Chantal Mouffe, destacam que o populismo pode surgir como resposta à crise da democracia liberal, mas que o desafio está em canalizar essas energias para a radicalização democrática, e não para o fechamento autoritário. Ela propõe uma “democracia agonística”, onde o dissenso é incorporado como parte vital do debate público. Por outro lado, Ernesto Laclau, parceiro intelectual de Mouffe, vê o populismo como um modo de articular demandas sociais dispersas, criando uma identidade coletiva. Ainda que reconheça o potencial mobilizador do populismo, Laclau é criticado por não enfatizar suficientemente os perigos do personalismo e da concentração de poder que frequentemente o acompanham.

No campo da sociologia, Max Weber oferece uma análise crucial ao identificar a liderança carismática como elemento-chave no populismo e no autoritarismo. Segundo ele, esse tipo de liderança se apoia na figura do líder “salvador”, cuja legitimidade não vem da legalidade ou da tradição, mas de sua capacidade de mobilizar emocionalmente as massas. Quando esse carisma não é institucionalizado, ou seja, transformado em normas e limites, tende a corroer a democracia. Michel Foucault também contribui ao mostrar como o poder se infiltra em todos os aspectos da vida social e se sustenta por discursos e práticas que naturalizam a dominação. Ele alertava que o controle autoritário muitas vezes não se impõe de forma explícita, mas através de mecanismos sutis de vigilância e normalização.

Frequentemente, o populismo autoritário instrumentaliza a linguagem, invertendo valores e confundindo conceitos. Liberdade passa a significar apenas a vontade do governante; justiça, a perseguição dos “inimigos da pátria”; e verdade, o que o líder afirma. George Orwell, em 1984, antecipou essa lógica de manipulação com a célebre máxima “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. Essa distorção semântica é uma das estratégias mais perigosas do autoritarismo contemporâneo, pois desarma criticamente a população e impede o reconhecimento da opressão.

A globalização e as redes sociais também trouxeram novos elementos ao debate. A velocidade da informação, a polarização digital e os algoritmos que reforçam crenças pré-existentes criaram uma esfera pública fragmentada, onde o diálogo é substituído pelo confronto. Zygmunt Bauman, ao analisar a modernidade líquida, destaca como a fluidez dos vínculos sociais torna os indivíduos mais vulneráveis à manipulação. Quando a política se torna espetáculo, e a verdade perde relevância, o espaço democrático se enfraquece e abre caminho para o messianismo e a intolerância.

Portanto, é urgente resgatar o espírito democrático em todas as dimensões da vida pública. Isso passa pelo fortalecimento das instituições, pelo investimento em educação crítica, pela defesa da cultura como espaço de liberdade e pela reconstrução de uma esfera pública racional e inclusiva. Como afirmou Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres — e de todos os cidadãos — sejam questionados”. A vigilância democrática, portanto, não é tarefa ocasional, mas permanente.

Em síntese, a luta contra o populismo autoritário não pode ser apenas reativa; ela precisa ser propositiva. Exige a construção de uma cultura democrática profunda, que vá além das eleições e das formalidades jurídicas. Implica formar sujeitos críticos, conscientes de seus direitos, e capazes de participar ativamente da vida pública com responsabilidade e solidariedade. Como bem disse Nelson Mandela: “A democracia exige que respeitemos as diferenças, que rejeitemos o autoritarismo e que vejamos na diversidade uma força, não uma ameaça”. É com essa consciência que devemos enfrentar os riscos à ordem democrática — com firmeza, lucidez e compromisso com um futuro mais justo e plural.

Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.

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