Um alerta para democracia: Abstenções em primeiro plano

 

Ronaldo Castilho

 

 

As recentes eleições municipais revelaram um fenômeno inquietante: em diversas cidades, as abstenções superaram o número de votos válidos. Esse índice crescente de ausência nas urnas acende um alerta para a saúde da nossa democracia e exige uma reflexão mais profunda sobre o papel e a responsabilidade de nossos representantes e eleitores.

É claro que, legalmente, o candidato que obtiver a maioria dos votos válidos é eleito, independentemente do número de abstenções. Mas, por mais que a eleição seja considerada válida pela Justiça Eleitoral, o que significa uma vitória se a maior parte dos cidadãos optou por não participar? Esse cenário, em que o "vencedor" recebe o mandato em meio a uma rejeição silenciosa da maioria dos eleitores, escancara uma insatisfação que vai além da simples apatia.

As causas para esse fenômeno são variadas, mas podem ser agrupadas em três grandes categorias: falta de confiança nos políticos, descrença nas instituições e dificuldades práticas para votar ou questões logísticas. O primeiro fator parece ser o mais significativo. A sequência de escândalos de corrupção, promessas não cumpridas e polarização extrema esgotou a paciência de muitos cidadãos, que passaram a ver o voto não mais como uma ferramenta de mudança, mas como um ritual vazio.

O aumento das abstenções representa, também, uma crise de representatividade. Quando uma eleição é decidida por um número restrito de eleitores, o mandatário que assume o cargo o faz com um respaldo popular reduzido. Isso pode impactar diretamente a legitimidade das ações governamentais e tornar o governante mais vulnerável às pressões de minorias organizadas, criando um ciclo de decisões que talvez não reflitam a vontade da maioria.

Além disso, a ausência de uma ampla participação popular nas eleições favorece a perpetuação de práticas políticas antiquadas e clientelistas. Sem um voto massivo e consciente que pressione por renovação e transparência, as estruturas tradicionais se fortalecem, acomodadas na passividade de uma maioria que se sente alienada do processo.

O cenário é, sem dúvida, preocupante, mas pode ser revertido. Para que a participação cidadã seja revitalizada, é necessário um esforço conjunto entre instituições, líderes políticos e a própria sociedade civil. Incentivos à educação política, ao debate transparente e ao engajamento das comunidades podem ser poderosas ferramentas para atrair novamente os cidadãos ao processo eleitoral.

Em resumo, a vitória das abstenções é um grito silencioso da sociedade brasileira, que não pode ser ignorado. Ele exige que os líderes eleitos governem com responsabilidade e, acima de tudo, com um compromisso renovado com a ética e a eficiência. Afinal, a verdadeira vitória democrática acontece quando todos se sentem representados, e não apenas aqueles que escolheram comparecer.

Mas as abstenções são debatidas e discutidas há muito tempo. Jean-Jacques Rousseau acreditava que a participação ativa dos cidadãos era essencial para a legitimidade de um governo. Em sua obra "O Contrato Social", ele defendia que o poder legítimo só poderia existir quando exercido com o consentimento direto dos governados. Para ele, a abstenção é um rompimento desse contrato, um sinal de que a "vontade geral" está sendo comprometida. Rousseau veria a abstenção como um alerta de que o sistema não está funcionando de acordo com a vontade coletiva. Pierre Bourdieu via a abstenção como reflexo das desigualdades sociais, argumentando que ela era uma manifestação de como os grupos marginalizados se sentem excluídos do sistema político. Para ele, as classes menos favorecidas, que se sentem ignoradas pelos governantes, são as mais propensas a se abster nas eleições. Esse fenômeno, segundo Bourdieu, demonstra que o sistema político tende a servir aos interesses das classes dominantes, enquanto os mais pobres se sentem distantes da possibilidade de mudança. David Easton, teórico da ciência política, estudou a legitimidade dos sistemas políticos e como a confiança dos cidadãos afeta a estabilidade governamental. Ele argumentava que a abstenção era um indicador de perda de confiança na capacidade das instituições de resolver problemas coletivos. Easton via a abstenção como um desafio à legitimidade democrática, e acreditava que as instituições devem buscar recuperar a confiança pública para garantir a estabilidade política. Para Jurgen Habermas, a democracia deve ser um espaço de diálogo aberto, onde os cidadãos possam discutir e influenciar as decisões. Ele via a abstenção como um reflexo da falta de oportunidades reais de participação. Habermas acreditava que, quando o sistema não promove um espaço para o diálogo e a inclusão, os cidadãos se distanciam, e a abstenção cresce. Sua proposta era que a democracia precisa criar formas de participação que vão além do voto.

Essas reflexões de pensadores e filósofos mostram que a abstenção nas eleições não é um fenômeno trivial, mas um sinal de complexos problemas na estrutura e na percepção da democracia. Ela pode indicar a alienação dos cidadãos, a falta de confiança nas instituições e a necessidade de renovação das formas de participação política. Reforça também a importância de uma democracia que vá além do ato de votar, promovendo diálogos e incentivando a participação ativa dos cidadãos.

 

Ronaldo Castilho é jornalista e bacharel em Teologia e Ciência Política

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