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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 24/11/2025 09:59 -

A escravidão no Brasil e as permanências do racismo estrutural

 

Ronaldo Castilho

 

No dia 20 de novembro, o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, uma data que não se limita à memória de Zumbi dos Palmares ou à resistência quilombola, mas que convida o país a revisitar sua própria história. Revisitar, antes de tudo, significa reconhecer: o Brasil foi a nação que mais tempo manteve o regime escravista no Ocidente e a última das Américas a aboli-lo. Mais de três séculos de escravidão deixaram marcas profundas que, como alertam diversos pensadores ao longo da história, moldaram nossas estruturas econômicas, políticas, culturais e subjetivas. O racismo brasileiro não é um acaso: ele é uma herança que insiste em permanecer.

A escravidão no Brasil assumiu proporções gigantescas. Estimativas apontam que cerca de cinco milhões de africanos foram trazidos para cá, um número muito superior ao de qualquer outro território das Américas. O filósofo francês Michel Foucault dizia que “o poder produz realidade, produz domínios de objetos e rituais de verdade”. A escravidão brasileira não foi apenas um sistema econômico baseado na exploração do trabalho alheio; ela produziu uma lógica própria de poder, naturalizando a desigualdade, transformando em rotina a violência e estabelecendo a ideia de que alguns corpos valem menos que outros. É essa lógica que sobrevive, transfigurada, no que hoje chamamos de racismo estrutural.

A abolição de 1888, celebrada como marco de liberdade, foi, na verdade, um ponto de partida extremamente frágil. O historiador José Murilo de Carvalho lembra que nenhum outro processo de abolição nas Américas ocorreu sem políticas de integração ou reparação. O recém-liberto brasileiro foi entregue à própria sorte, sem terra, sem educação, sem trabalho garantido, sem reconhecimento social.

Abdias Nascimento, uma das maiores vozes do movimento negro, denunciou esse abandono como “uma segunda escravidão”, pois a liberdade legal, sem transformações materiais, apenas deslocou a opressão para outras formas: a marginalização urbana, o desemprego, a violência policial e o racismo cotidiano.

Ao longo do século XX, o Brasil vestiu a retórica da “democracia racial”, teoria popularizada pelo sociólogo Gilberto Freyre, que defendia a miscigenação como característica harmônica da sociedade brasileira. Embora suas obras tenham valor cultural e antropológico, essa visão foi duramente criticada por pensadores como Florestan Fernandes e Lélia Gonzalez, que demonstraram como o discurso da cordialidade serviu para encobrir desigualdades. Para Florestan, a integração do negro à sociedade de classes brasileira ocorreu de modo “desorganizado, tardio e discriminatório”. Lélia Gonzalez, por sua vez, chamava atenção para o racismo à brasileira, mascarado por expressões como “moreno” e “boa aparência”, que suavizam a discriminação e a transformam em prática cotidiana.

No início do século XXI, o racismo estrutural passou a ser tratado com mais rigor na academia e nos movimentos sociais. O filósofo Sílvio Almeida explica que não se trata de indivíduos preconceituosos isolados, mas de um conjunto de práticas institucionais, econômicas e políticas que reproduzem desigualdades raciais independentemente da intenção das pessoas. É por isso que, mesmo sem leis segregacionistas, negros continuam sendo maioria entre as vítimas de homicídio, entre os encarcerados, entre os desempregados e entre os que têm menor acesso à educação de qualidade. Os números mostram que, no Brasil, cor da pele ainda define destino.

A permanência do racismo estrutural também se expressa no imaginário social. Frantz Fanon, psiquiatra e pensador martinicano, escrevia que o racismo fere o sujeito não apenas materialmente, mas simbolicamente, criando cicatrizes psicológicas profundas. No Brasil, essa ferida permanece aberta. A desvalorização estética, a hipersexualização, o mito da inferioridade intelectual e a exclusão dos espaços de poder continuam a atuar como mecanismos que reforçam a desigualdade. Não é coincidência que, até hoje, a presença de pessoas negras em universidades, no Judiciário, na política ou em cargos de liderança empresarial seja tão reduzida.

Mas se a história da escravidão deixou marcas persistentes, ela também deixou um legado de resistência. Desde os quilombos, passando por figuras como Luís Gama, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e Mestre Pastinha, a intelectualidade e a cultura negras foram fundamentais para repensar o país. A filósofa Sueli Carneiro descreve esse processo como “insubmissão epistêmica”: a construção de conhecimento, arte e política capazes de desafiar a narrativa dominante e propor outro horizonte civilizatório.

O Dia da Consciência Negra não é, portanto, uma celebração isolada: é um convite à reflexão coletiva. Celebrar Zumbi é celebrar todos os que resistiram e resistem, mas também é reconhecer que o Brasil ainda não superou o legado da escravidão. Enquanto os benefícios da abolição não forem plenamente compartilhados, enquanto a cor da pele continuar determinando oportunidades, enquanto vidas negras forem descartáveis, ainda estaremos presos às correntes do passado.

Superar o racismo estrutural exige mais do que consciência; exige ação. Exige reconhecer privilégios, apoiar políticas públicas de reparação, fortalecer ações afirmativas, ampliar a representatividade e combater o racismo em todas as esferas, na escola, na mídia, na política, na economia e nos espaços cotidianos. Como diria Ângela Davis, “não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar”.

O Brasil só será verdadeiramente livre quando todos forem. E isso significa encarar a história não como um peso, mas como um compromisso. Um compromisso com aqueles que vieram antes, com aqueles que vivem agora e com aqueles que ainda virão. O Dia da Consciência Negra nos lembra que a luta pela igualdade não começou hoje e não terminará amanhã. Ela é uma construção permanente e é dever de toda a sociedade garantir que o futuro não repita as sombras do passado.

Ronaldo Castilho é Jornalista e articulista, com pós-graduação em Jornalismo Digital. É licenciado em História e Geografia, bacharel em Teologia e Ciência Política, e possui MBA em Gestão Pública com ênfase em Cidades Inteligentes.

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