As revoluções do século XX e o legado para as democracias atuais
Ronaldo Castilho
O século XX foi um período marcado por profundas transformações políticas, sociais e econômicas, nas quais as revoluções desempenharam papel central. Desde a Revolução Russa de 1917 até os movimentos de independência na África e na Ásia, passando pelas revoluções sociais, estudantis e culturais, o mundo assistiu à reconfiguração das estruturas de poder e à emergência de novas ideias sobre direitos, cidadania e participação política. Essas revoluções não apenas alteraram fronteiras e regimes, mas também lançaram as bases para reflexões sobre democracia, liberdade e justiça que continuam a repercutir no século XXI. Para compreender o impacto dessas transformações, é essencial recorrer a pensadores de diferentes épocas que refletiram sobre o poder, a revolução e o papel do cidadão na sociedade.
Karl Marx, no século XIX, preparou o terreno teórico para grande parte das revoluções socialistas do século XX. Ao analisar o capitalismo, Marx destacou a contradição entre a burguesia e o proletariado, prevendo que essa tensão inevitavelmente resultaria em conflito social e, eventualmente, em revolução. A Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques em 1917, materializou essa teoria, inaugurando um experimento político de caráter radical, que buscava a igualdade social através da coletivização e da centralização do poder. Contudo, como alertou mais tarde Hannah Arendt, em suas reflexões sobre totalitarismo, o resultado de muitas dessas revoluções nem sempre correspondeu às expectativas teóricas: regimes autoritários e centralizados muitas vezes suprimiram a liberdade individual em nome de uma utopia coletiva. Arendt destacava que a revolução, embora nascida de um desejo legítimo de transformação, poderia degenerar quando a participação cidadã e a pluralidade de vozes fossem negligenciadas.
Ao mesmo tempo, as revoluções liberais e anticoloniais do século XX, como a descolonização da África e da Ásia, mostraram caminhos distintos de transformação. Pensadores como Frantz Fanon enfatizaram que a libertação política exigia, antes de tudo, a reconquista da dignidade e da identidade do povo oprimido. Em suas análises, Fanon alertava para os perigos de substituir um colonialismo formal por um autoritarismo interno, lembrando que a verdadeira democracia demanda não apenas soberania, mas também igualdade e participação efetiva. Esses movimentos contribuíram para a ampliação do conceito de democracia, mostrando que ela não se limita à realização de eleições, mas implica transformação social e reconhecimento dos direitos de todos os cidadãos.
O século XX também testemunhou revoluções culturais e sociais, como os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, a revolução sexual e os protestos estudantis de 1968. John Dewey, filósofo e educador, enfatizou que a democracia deve ser entendida como um modo de vida, não apenas como um sistema político formal. Para Dewey, a participação ativa e crítica da sociedade é essencial para que os princípios democráticos se concretizem. Assim, movimentos sociais, reivindicações por igualdade racial, direitos das mulheres e pela liberdade de expressão constituíram formas de revolução que ampliaram o entendimento de democracia, incorporando a dimensão social e cultural à esfera política.
No entanto, nem todas as revoluções do século XX trouxeram avanços democráticos imediatos. As experiências de regimes totalitários, como o nazismo e o stalinismo, demonstraram que a revolução pode se tornar destrutiva quando concentrada no poder e dissociada da participação cidadã. Alexis de Tocqueville, em suas reflexões sobre a democracia no século XIX, já alertava para o perigo da tirania da maioria e para a necessidade de freios institucionais que preservem a liberdade individual. O século XX confirmou que a construção de democracias sólidas depende não apenas da mudança de regimes, mas de instituições capazes de mediar conflitos, proteger direitos e assegurar a participação efetiva da sociedade civil.
Ao refletir sobre o legado dessas revoluções para as democracias atuais, é possível identificar três elementos centrais. Primeiro, a noção de cidadania ativa, que implica participação, engajamento e vigilância sobre o poder público. Tocqueville e Dewey convergem nesse ponto: a democracia não sobrevive sem cidadãos informados, críticos e envolvidos. Segundo, a busca pela justiça social, evidenciada nas revoluções sociais e anticoloniais, reforça que a democracia deve ser inclusiva, promovendo igualdade de oportunidades e combatendo desigualdades históricas. Por fim, a importância da institucionalidade e da pluralidade política, como ensinado por Montesquieu e Arendt, mostra que os sistemas democráticos só prosperam quando há equilíbrio de poderes e respeito às diferenças, prevenindo a concentração autoritária do poder.
As experiências do século XX também deixaram lições sobre os riscos de revoluções mal conduzidas ou excludentes. Quando movimentos sociais ou revoluções políticas não se traduzem em participação ampla e instituições sólidas, há risco de retrocessos ou de governos autoritários mascarados por discursos utópicos. Paulo Freire, ao refletir sobre educação e emancipação, enfatizava que transformação social genuína requer consciência crítica e engajamento coletivo, lembrando que liberdade e democracia não são presentes de governos, mas conquistas de cidadãos ativos.
Em síntese, as revoluções do século XX representaram rupturas e reconfigurações de poder, mas seu legado para as democracias atuais vai além da mudança de regimes. Elas ensinaram que a democracia exige participação, justiça social e instituições robustas; que liberdade e igualdade são conquistas que demandam vigilância constante; e que a transformação social deve estar sempre vinculada à cidadania crítica. O século XXI, marcado por desafios como desigualdade crescente, crises ambientais e polarização política, continua a se inspirar nos ensinamentos das revoluções passadas, reafirmando que a construção de democracias sólidas é um processo contínuo, que exige engajamento, diálogo e compromisso com os valores que sustentam a vida coletiva.
Portanto, olhar para o século XX é mais do que revisitar acontecimentos históricos: é compreender os princípios que moldam a democracia contemporânea e reconhecer que o futuro político das sociedades depende da capacidade de aprender com os erros e acertos das revoluções que definiram o último século. Como afirmou Tocqueville, a democracia é frágil, mas também resiliente, e seu fortalecimento exige que cada cidadão participe da história, não apenas como espectador, mas como protagonista consciente de seu tempo.
Ronaldo Castilho é Jornalista e articulista, com pós-graduação em Jornalismo Digital. É licenciado em História e Geografia, bacharel em Teologia e Ciência Política, e possui MBA em Gestão Pública com ênfase em Cidades Inteligentes.