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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 29/09/2025 15:19 -

Virtude como Base da Democracia e da Representação Política

 

Ronaldo Castilho

 

A palavra “virtude” carrega um peso histórico e filosófico profundo, que transcende épocas e culturas. Na vida pública, ela se torna ainda mais relevante, pois diz respeito não apenas ao caráter individual, mas à conduta daqueles que assumem responsabilidades diante da coletividade. A política, por sua própria natureza, exige decisões que impactam a vida de muitas pessoas, e, por isso, a virtude se apresenta como um ideal indispensável, ainda que muitas vezes negligenciado.

O filósofo grego Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, definia a virtude como o hábito de escolher o meio-termo entre dois extremos viciosos, guiado pela razão. Para ele, o homem virtuoso é aquele que age conforme a razão e busca o bem comum. No âmbito da vida pública, esse pensamento nos leva a refletir sobre a necessidade de governantes e líderes desenvolverem um equilíbrio entre interesses conflitantes, evitando tanto o excesso de poder quanto a omissão. Um líder virtuoso, segundo Aristóteles, não age por impulsos egoístas, mas a partir de uma visão racional e ética do que é melhor para a comunidade.

Séculos depois, o filósofo romano Cícero trouxe uma perspectiva que ainda ecoa fortemente no debate político atual. Em suas reflexões sobre a República, Cícero afirmou que a verdadeira glória de um homem público não está em obter cargos ou honrarias, mas em servir ao bem comum e garantir a justiça. Para ele, a política deveria ser uma extensão da moral, e a virtude era a base para a construção de uma sociedade justa. Em um tempo marcado por corrupção e disputas pelo poder, Cícero defendeu que a integridade pessoal era inseparável da função pública. Essa ideia permanece atual, sobretudo em sociedades onde a política frequentemente se distancia dos ideais éticos.

Com o advento do cristianismo, a virtude passou a ser interpretada também sob a ótica espiritual. Santo Agostinho, em A Cidade de Deus, introduziu a noção de que a verdadeira virtude só pode ser plenamente alcançada quando orientada para Deus e para o amor ao próximo. No campo da vida pública, isso significa que a busca por justiça e bem-estar social deve estar enraizada em princípios que transcendam interesses materiais e temporais. A visão agostiniana reforça a responsabilidade moral dos líderes, lembrando que suas ações têm consequências não apenas terrenas, mas também espirituais.

No período moderno, o pensamento político ganhou contornos mais pragmáticos. Maquiavel, em O Príncipe, trouxe uma visão que muitas vezes é interpretada como contrária à virtude. Ele argumenta que, na prática do governo, pode ser necessário ao governante adotar medidas duras ou até mesmo imorais para garantir a estabilidade do Estado. Embora muitas vezes criticado, Maquiavel não nega a importância da virtude, mas a redefine em termos de eficácia política, chamando-a de virtù. Nesse contexto, a virtude deixa de ser apenas moral e passa a incluir a capacidade de agir com firmeza, astúcia e coragem. Essa visão, embora controversa, nos lembra que a vida pública envolve dilemas complexos, nos quais o ideal nem sempre coincide com o possível.

Já no século XVIII, Montesquieu trouxe uma contribuição fundamental ao relacionar a virtude diretamente ao funcionamento da república. Em O Espírito das Leis, ele afirmou que, em regimes republicanos, a virtude é o princípio que sustenta o equilíbrio político, pois a liberdade só pode existir se os cidadãos e governantes forem guiados pelo amor à pátria e pela moderação. Montesquieu destacou que a ausência de virtude leva à corrupção, à tirania e, consequentemente, à ruína do Estado. Essa análise ressalta que a virtude não é apenas uma qualidade individual, mas uma condição coletiva indispensável para a sobrevivência de qualquer sistema democrático.

Na contemporaneidade, pensadores como Hannah Arendt ampliaram a discussão sobre a virtude na vida pública, especialmente em um mundo marcado por regimes autoritários e crises de representatividade. Em suas análises sobre o totalitarismo e a banalidade do mal, Arendt mostra como a ausência de reflexão moral e de responsabilidade individual pode levar pessoas comuns a cometerem atos atrozes. Nesse sentido, a virtude aparece não apenas como uma exigência para líderes, mas também para cidadãos que participam ativamente da vida pública. Arendt nos alerta para a importância da coragem cívica, da capacidade de questionar e resistir a ordens injustas, reafirmando que a política deve ser um espaço de liberdade e ação responsável.

No Brasil e em outras democracias jovens, a virtude na vida pública é frequentemente colocada à prova. A corrupção, o populismo e a polarização política são sinais de uma fragilidade ética que ameaça a confiança da população nas instituições. Para resgatar a virtude, é necessário cultivar valores como honestidade, transparência, empatia e compromisso com o bem comum. Isso não se limita aos governantes, mas envolve toda a sociedade, que deve exercer a cidadania de forma ativa e consciente.

A virtude, portanto, não pode ser vista como um ideal distante ou meramente filosófico. Ela deve se manifestar nas escolhas diárias, nas decisões políticas e nas relações entre o Estado e os cidadãos. A história nos mostra que os períodos de maior estabilidade e prosperidade foram aqueles em que a vida pública esteve orientada por princípios éticos sólidos. Por outro lado, quando a virtude é abandonada, abre-se espaço para a tirania, a corrupção e o caos social.

Em síntese, o conceito de virtude na vida pública é um fio condutor que atravessa séculos de reflexão filosófica e experiência histórica. De Aristóteles a Hannah Arendt, passando por Cícero, Santo Agostinho, Maquiavel e Montesquieu, percebemos que, embora as definições de virtude variem, todas convergem para a mesma verdade: a política só alcança sua plenitude quando orientada por valores que colocam o bem coletivo acima dos interesses individuais. Em um mundo cada vez mais complexo e interconectado, a virtude se torna não apenas um ideal, mas uma necessidade urgente para a construção de sociedades mais justas, livres e humanas.

Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.

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