O Papel da Esperança Escatológica na Ética Contemporânea
Ronaldo Castilho
A escatologia cristã, entendida como o estudo das últimas coisas — a consumação da história, o destino final da humanidade e a plena manifestação do Reino de Deus — sempre exerceu fascínio e despertou debates intensos dentro e fora dos círculos religiosos. Desde os primeiros séculos da era cristã, as reflexões sobre o fim dos tempos se entrelaçam com a experiência cotidiana da Igreja, influenciando a ética, a política e até mesmo a organização social. Nos dias atuais, marcados por crises globais, polarização política, avanços tecnológicos e uma profunda sensação de incerteza, a escatologia não é apenas um tema teológico distante, mas uma lente por meio da qual podemos compreender e enfrentar os desafios do presente.
O Novo Testamento apresenta uma escatologia já iniciada, mas ainda não consumada. Jesus Cristo, ao proclamar que "o Reino de Deus está próximo", inaugura uma nova era, mas deixa claro que a plenitude desse Reino será revelada somente em seu retorno. Essa tensão entre o "já" e o "ainda não" é central para a teologia cristã e tem implicações profundas para a vida prática dos fiéis. Agostinho de Hipona, no século IV, em sua obra "A Cidade de Deus", advertia contra a tentação de identificar o Reino de Deus com projetos humanos ou sistemas políticos. Para ele, a história é marcada por duas cidades: a Cidade dos Homens, caracterizada pelo amor de si até o desprezo de Deus, e a Cidade de Deus, marcada pelo amor a Deus até o desprezo de si. Assim, Agostinho convida os cristãos a viverem no mundo, mas sem se prenderem a ele, mantendo uma esperança ativa e orientada para a eternidade.
Nos dias de hoje, esse pensamento se mostra extremamente relevante. Vivemos em um cenário de crescente idolatria política, onde líderes e ideologias são tratados quase como salvadores da pátria. Em meio a crises institucionais e polarizações, muitos cristãos correm o risco de confundir a missão da Igreja com agendas partidárias. A escatologia, nesse contexto, funciona como um antídoto, lembrando que a salvação não virá de governos terrenos, mas da ação soberana de Deus na história. O teólogo contemporâneo N. T. Wright destaca que a esperança cristã não é uma fuga do mundo, mas a certeza de que Deus restaurará todas as coisas. Em sua visão, a ressurreição de Jesus é o sinal de que a nova criação já começou, e a Igreja tem o papel de antecipar essa realidade por meio de justiça, misericórdia e amor no presente.
Além do campo político, a escatologia dialoga com os desafios éticos trazidos pelo avanço tecnológico. Vivemos na chamada era da inteligência artificial, da biotecnologia e da comunicação em tempo real. A promessa de um futuro controlado pelo ser humano, capaz de prolongar a vida e até desafiar a morte, parece uma reedição moderna da Torre de Babel. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, no século XIX, anunciou a morte de Deus e a ascensão do “super-homem”, um ser humano autônomo, criador de seus próprios valores. Embora Nietzsche falasse em termos filosóficos, suas ideias ecoam hoje na cultura tecnológica, onde muitas vezes se tenta substituir a transcendência divina por um humanismo radical e autossuficiente.
Por outro lado, a escatologia cristã oferece uma perspectiva diferente: a história não caminha para um futuro construído apenas por mãos humanas, mas para a revelação final de Deus. Essa visão não implica passividade. Ao contrário, como afirmou Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão que enfrentou o nazismo, a fé cristã é chamada a agir no presente com coragem, mesmo sabendo que a redenção plena virá somente na segunda vinda de Cristo. Bonhoeffer escreveu, pouco antes de ser executado: “O último passo não é nosso, mas de Deus”. Essa declaração sintetiza a postura escatológica saudável: engajamento ativo, sem arrogância nem desespero.
Nos dias atuais, os desafios ambientais também trazem à tona questões escatológicas. A crise climática, os desastres naturais e a destruição dos ecossistemas geram em muitos a sensação de que o mundo caminha para o colapso. Há quem veja nessas tragédias sinais claros do fim dos tempos, citando passagens bíblicas sobre terremotos, pestes e guerras. Contudo, é preciso cuidado para não cair em interpretações apocalípticas simplistas. O teólogo suíço Karl Barth lembrava que o juízo de Deus não deve ser usado como desculpa para a negligência humana. Segundo ele, a esperança cristã deve inspirar responsabilidade. Assim, cuidar do planeta não é apenas uma questão ecológica, mas também espiritual e escatológica, pois expressa a expectativa pela renovação da criação.
Outro aspecto relevante é a crescente ansiedade coletiva diante do futuro. A pandemia de COVID-19 revelou a fragilidade das estruturas sociais e trouxe à tona o medo existencial. Muitos se perguntaram sobre o sentido da vida, da morte e da história. Em momentos como esse, a escatologia cristã oferece consolo, pois aponta para uma esperança que transcende as circunstâncias temporais. O filósofo francês Blaise Pascal, ainda no século XVII, já afirmava que o ser humano tem um vazio que só pode ser preenchido por Deus. Em tempos de incerteza, essa afirmação ganha nova força, mostrando que nenhuma tecnologia, governo ou ideologia pode oferecer a segurança que a fé em Cristo proporciona.
No contexto brasileiro, os desafios também são específicos. A violência urbana, a desigualdade social e a crise na saúde e na educação parecem problemas insolúveis. Diante disso, algumas comunidades cristãs podem cair na tentação de adotar uma postura escapista, focando apenas na salvação individual e na expectativa do céu, sem se envolverem nas dores da sociedade. Entretanto, a escatologia bíblica não apoia a alienação. Jesus orou para que seus discípulos estivessem no mundo, ainda que não fossem do mundo. A esperança escatológica deve impulsionar a transformação social, lembrando que cada ato de justiça, cada gesto de compaixão, é uma pequena antecipação do Reino que virá.
Por fim, a escatologia cristã nos desafia a viver com equilíbrio. Como disse C. S. Lewis, “os cristãos que mais fizeram por este mundo foram justamente aqueles que mais pensaram no próximo”. Em outras palavras, quanto mais o cristão tem os olhos voltados para a eternidade, mais ele se engaja no presente. Essa perspectiva é profundamente necessária em tempos de polarização, medo e incerteza.
Assim, ao refletirmos sobre a escatologia, não estamos apenas falando sobre o futuro distante ou sobre especulações acerca do Apocalipse. Estamos lidando com a própria forma como encaramos o hoje. A esperança cristã não nega as dores do presente, mas as ilumina com a promessa de um final redentor. É essa esperança que pode inspirar coragem para enfrentar as crises, discernimento para não se perder em falsas promessas e perseverança para continuar trabalhando pela justiça, pela paz e pela dignidade humana.
Em um mundo sedento por respostas rápidas e soluções imediatas, a escatologia cristã nos lembra que a história tem um sentido maior, guiado pelas mãos de Deus. Cabe a nós viver essa verdade com fé ativa, construindo hoje os sinais do Reino que, um dia, será plenamente revelado.
Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.