O Frio na Barriga: entrando em cena com confiança
O corredor atrás do palco tem cheiro de madeira antiga, de bastidores que ainda guardam o eco das gargalhadas de ensaios passados. A grama de tapete amassado sob meus pés, a pele da minha nuca arrepiando com cada luz que corta a penumbra. Eu, ator, carrego comigo a história que a plateia ainda não viu, e, antes de qualquer palavra, sinto o friozinho na barriga chegar como quem acende uma vela bem no fundo do peito.
É uma coisa simples e nova ao mesmo tempo: o estômago se contrai em um quase não-respiro, o coração decide dar uma batida a mais por cada linha que me espera. O suor faz a pele ficar úmida ali, bem onde o ego de pronto já se avança para fazer parecer tudo seguro, tudo sob controle. Mas o friozinho insiste, brinca comigo, como se dissesse: “vai, mostra quem você é de verdade, não quem você imagina ser”. A voz fica um pouco rouca, a respiração se ajeita, e eu fecho os olhos por um momento para ouvir o que o silêncio tem a dizer.
Abro os olhos no espelho do camarim e me vejo como alguém que está prestes a nascer de novo: o terno que aperta, as mãos que tremem bem discretamente, a ponta dos dedos que ainda não sabe o que fazer com a expectativa. A linha do roteiro está rabiscada com pressa, cada uma das palavras pesando menos e, ao mesmo tempo, mais do que tudo o que já vivi. Eu toco de leve a página, como quem apoia a mão na pele de um animal que confia, e respiro pela boca, contado: um, dois, três… o quarto passo não é mais meu, é da personagem que eu vou encarnar.
Quando a luz fria da cênica se acende, o mundo lá fora parece recuar. Ouço o sussurro da direção, o ruído daquela cortina que, a cada movimento, parece dizer: agora. As mãos que tremiam se acomodam, reconhecem o peso do corpo que não é mais meu, reconhecem o tempo que só a entrada em cena sabe guardar. O fríozinho sobe, sobe pela garganta, encolhe o estômago, mas não é apenas medo; é um combustível que acende a curiosidade. Cada músculo do meu rosto se ajusta, cada eixo da coluna parece encontrar o eixo certo, e a plateia que ainda não viu não é mais um vento que ameaça derrubar; é, de alguma forma, o destino que me espera para ser contado.
No ritual que se repete toda vez, o corpo encontra o seu acordo com a personagem. Conto uma última vez os passos invisíveis que me conduzem até o palco: o ajuste da respiração, a respiração que ali se transforma em ritmo da fala, o olhar que se fixa no ponto longo onde o chão e o ar se encontram, o perdão que me dou por cada falha que ainda não cometi. O friozinho se transforma em foco, em silêncio que sabe ouvir. O som que antes parecia um assombro agora é apenas a cadência do meu corpo se preparando para ser ouvido.
E então a cortina se abre, revelando o mar que é o público, aquela plateia que não me julga, apenas me espera. Eu piso o limite entre o camarim e a cena e, por um instante, tudo o que eu sou se dobra à história que eu vou contar. O frio continua, mas de uma forma que não corta mais: ele vira energia, ar que atravessa o peito, mão que segura firme o que precisa ser dito. E o friozinho na barriga, que já foi quase um susto, passa a ser o mapa do meu desejo de estar ali, de existir ali, de fazer aquela história ganhar corpo diante de olhos vivos.
Elson de Belém é Artista e Comunicador Cultural
Fonte CCPZ
Foto reprodução redes sociais