Por Adriana Passari - @adrianapassari

A kombi

Ela colocou a pequena na cadeirinha no banco de trás do seu carro, ajustou cuidadosamente o cinto de três pontos, o travesseirinho e lhe entregou a girafa de pelúcia que era o seu bichinho preferido. À sua frente uma tela passava um dos vídeos favoritos da menina com desenhos coloridos, uma porquinha rosa, com seus familiares e amiguinhos. Ela verificou se a trava para impedir a abertura por dentro estava ativada, se o vidro estava fechado e travado, fechou a porta do veículo. Passou em frente ao carro, foi para o outro lado. Na outra extremidade do banco de passageiros, havia um assento elevado, para o transporte da menina mais velha. Carregou a criança com um pouco mais de dificuldade pois ela já estava “grandinha”. Colocou a primogênita no assento, ajeitou-lhe a roupa para não amassar demais ou causar algum incômodo durante a viagem.

Entregou-lhe o livro escolhido, um de pintar os desenhos feitos em contornos, com vários animais da fazenda, galinha, cavalo, vaca, porquinho. Canetas para colorir em mãos, num estojo fechado por zíper. Uma outra tela ligada apresentava um vídeo infantil educativo, ensinando as letrinhas vogais a, e, i, o, u... Por um instante sua mente viajou em uma dúvida: a letra y é vogal ou consoante? Chegou a rir do pensamento, mas não chegou à conclusão. Mais tarde o google poderá lhe responder, se ela lembrar de perguntar.

Fechou a porta, com a trava anti fuga de crianças acionada. Verificou a bolsa térmica com água, frutas, lanches para as crianças, castanhas e barrinhas de cereais para os adultos. Entrou. Sentou-se no banco ao lado do banco do motorista, o marido assumiu o volante. Prontos para a viagem de 1h43 (segundo o aplicativo). Pegaram a estrada e lá foram com destino à casa da tia Maria, que não viam há muito tempo. Algumas discussões depois, devido velocidade ou ultrapassagem, chegaram ao destino no horário previsto. Todos desembarcaram e entraram na casa ampla da velha chácara. Outros membros da família já chegaram por lá. Vai ser um reencontro daqueles. Depois dos abraços em todos, cada um vai se ajeitando pela casa, enquanto as crianças saem correndo pelo gramado, acompanhadas pelos gritos preocupados da mãe. Cuidado. Vão devagar. Não se machuquem. Então foi puxada pelas irmãs que a arrastaram para um tour de memórias pela casa. Foram revendo cada cantinho conhecido da infância feliz que tiveram. 

@ericosanjuan

Os velhos beliches onde elas disputavam sempre pra ver quem ia dormir em cima, o velho quadro com uma figura feminina feia que elas apelidaram de “Joelma” em homenagem a uma garota chata da escola, a mesa de pebolim que brincavam tanto, estava ali toda empoeirada. O velho salão de diversão parecia bem menor agora. E então ela viu na parede perto da porta da entrada, no mural onde costumavam deixar recados umas para as outras, a figura da velha Kombi do tio Zé. O coração ficou apertadinho de saudade. Lembrou dos passeios inesquecíveis na velha Kombi. O tio usava o veículo para o trabalho e só tinha uma fileira de bancos de costas para o motorista e outra lá no fundo. Todo aquele espaço no meio era a maior alegria das irmãs e dos primos.

O tio chamava pra dar uma volta, todo mundo parava tudo que estava fazendo e subia na Kombi onde gostavam de “surfar” em pé enquanto o tio passeava pelas ruas da cidade. A cada brecada era um amontoado de crianças caindo umas em cima das outras. Todo mundo saía com alguns arranhões, hematomas e muito felizes. A memória trouxe-lhe lágrimas nos olhos. Podia lembrar até do cheiro que tinha aqueles dias. Cheiro de liberdade e de felicidade... 

PS.: Esta história, ao contrário das anteriores, foi criada a partir da ilustração do artista gráfico Érico San Juan que propôs o desafio. Desafio aceito e cumprido!

Ouça a história na voz de Adriana Passari: