Coluna O Canal da Lili

Quem vem do “planeta fome”, cai, chora, mas dá a volta por cima

 

Eliana Teixeira

 

Desigualdade social, exclusão, violência, racismo, falta de oportunidades profissionais diante da manutenção de privilégios para uma minoria, são problemas estruturais da sociedade brasileira através de séculos. Tudo isso se potencializa ainda mais quando é uma mulher quem sente tais injustiças na pele. Ícone da música brasileira, com reconhecimento internacional – foi eleita a voz do milênio pela rádio britânica BBC -, a cantora Elza Soares esteve várias vezes no tal fundo do poço e deu muita volta por cima.

No início de sua carreira, em 1953, Elza foi ironizada pelo apresentador Ary Barroso, no programa Desfile de Calouros, pela sua aparência e figurino. O apresentador, com o apoio de uma plateia que ria da aparência de Elza, perguntou a ela de qual planeta teria vindo. A resposta, firme e certeira, “do planeta fome”, foi suficiente para calar qualquer outra ironia do apresentador e silenciar o público. Elza cantou, foi ovacionada pela plateia e reconhecida por Ary Barroso, que declarou: “Senhora e senhores, nasce uma estrela”.

No último dia 20 de janeiro, plena aos 91 anos de idade, depois de ter saído inúmeras vezes do fundo do poço, por “causas naturais”, Elza Soares encerrou seu ciclo terreno. Uma vida marcada por situações dolorosas que serviram de combustível para que Elza fosse sempre além: da pobreza; da fome; da desesperança; da tragédia de ter sido obrigada a se casar aos 12 anos de idade; do sequestro de uma filha que foi reencontrada somente 30 anos após; da morte de quatro dos seus oito filhos – um deles morreu de acidente automobilístico aos 9 anos e era filho de Mané Garrincha, com quem a cantora teve um relacionamento conturbado por 17 anos, mas que considerava ter sido seu grande amor.

Para lidar com tanta tristeza e continuar a seguir, só podia ter vindo do “planeta fome”, residência de muitos brasileiros que enfrentam tragédias semelhantes ou situações tão difíceis quanto as que foram enfrentadas pela estrela. Mas quantos conseguem ter forças para sair do fundo do poço? Porque vamos ser francos, depois que passamos pelos perrengues, ao relatarmos os fatos, podemos até inspirar outras pessoas, mas durante o processo, no momento mais difícil, dói, chega a sangrar a alma.

Quem vem do “planeta fome” sabe: “Chorei, não procurei esconder. Todos viram, fingiram pena de mim, não precisava. Ali onde eu chorei, qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”.

Eliana Teixeira é pós-graduada em Gestão de Pessoas e jornalista – www.ocanaldalili.com.br

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